Autenticidade e Transparência na Rede
Para aprendermos a compreender a realidade é necessário compreendermo-nos enquanto realidade. E para isso é preciso aprender a vermo-nos como o resultado da nossa procura de contar as nossas histórias, de nos ficcionarmos como possíveis outros, de nos aceitarmos como aquilo que resta do que podíamos ter sido, o que não é pouco.
(Teixeira, 2006)
O ciberespaço trouxe consigo novos meios de expressão. Assim aconteceu com o papel, com a imprensa, com a pintura, com o cinema, com a televisão.
Na sequência do surgimento de qualquer um destes veículos, as questões da Autenticidade e da Transparência foram colocadas. São, aliás, questões precedentes e independentes dos meios, mas que estes relançam e relativamente às quais se atua na prevenção dos equívocos a que a sua corrupção pode conduzir.
Com a Internet e a possibilidade de permanente conectividade a um mundo dito não-real (porque não físico), a discussão em torno da Autenticidade e Transparência implicou a distinção entre Real e Virtual: poderão elas existir na virtualidade se esta não é real?
Para Lévy (1997, p.148), “não se trata de modo algum de um mundo falso ou imaginário. Ao contrário, a virtualização é a dinâmica mesma do mundo comum, é aquilo através do qual compartilhamos uma realidade. Longe de circunscrever o reino da mentira, o virtual é precisamente o modo de existência de que surgem tanto a verdade como a mentira”.
Se físico e virtual são ambos partes do Real em que existe o Ser, as questões colocadas são partilhadas e não exclusivas, pelo que não se pode dizer que no primeiro existe a Autenticidade e a Transparência, e que no segundo existe o seu inverso, nem o seu contrário. Perante a multiplicidade, simultaneidade e instantaneidade de signos, imagens e representações, a identidade do Ser sofre uma adaptação em nome da sua sobrevivência: do Ser unificado do Iluminismo, passando pelo Ser sociológico, pelo ser fragmentado e chegando ao Ser flexível, que flui entre os extremos e reconhece com naturalidade a coexistência de múltiplas facetas que se exprimem de forma desigual conforme o espaço em que se expressam. (Malveira & Galarça, 2011)
Não é por acaso que a rapariga do vídeo sente necessidade de refletir sobre a mudança que ocorre quando entra no espaço comunicacional do ciberespaço: não sendo a totalidade do seu Ser, é uma dimensão do mesmo que prevalece naquele espaço-tempo. Com fluidez na passagem entre as suas multiplicidades, sem angústia ou aniquilação do restante do seu Ser.
Como diz Sherry Turkle (1997:381), “cada era constrói as suas próprias metáforas, tendo em vista o bem-estar psicológico do indivíduo” e, citando Kenneth Gergen em The Saturated Self (1991),”embora de início as pessoas possam sentir-se angustiadas ante aquilo que entendem como um colapso da identidade, Gergen acredita que elas poderão vir a abraçar as novas possibilidades que se lhes oferecem. As noções individuais de eu desaparecem, dando lugar ao “primado das relações”. Deixamos de acreditar num eu independente da teia de relações na qual estamos mergulhados” (Turkle, 1997, pp.384-385).
O Eu e os Registos
Para cada meio de comunicação e formas de expressão, foram desenvolvidos mecanismos de validação da transparência e autenticidade do “Eu” e dos seus “Registos”. Aspetos como a identidade, autoria, legalidade, veracidade, credibilidade são sujeitos a escrutínio e formas de verificação de acordo com as características do meio envolvente.
Combinando a ausência da fisicalidade com a profusão de Registos, a legitimidade do Eu e do Registo na rede foi desde logo posta em causa. Como questiona Seymour Papert (1997:264-265), “as palavras que surgem no ecrã do meu computador são reais ou simuladas? Se confundirmos as palavras com a tinta com que as escrevemos no papel, então as que existem no ecrã são superficiais e simuladas. Mas se pensarmos um pouco mais sobre o verdadeiro significado das palavras, verificamos que elas são tão reais quanto as que são escritas com caneta e tinta.”
Outro aspeto motivador de desconfiança quanto à autenticidade e transparência do Eu e dos Registos tem a ver não apenas com a flexibilidade inerente ao Ser e à imaterialidade dos Registos, mas também com a natureza conectada da autoria e da produção. Daí que um erro na rede seja logo objeto de notícia e controvérsia, pondo em causa não apenas o caso particular como toda a natureza do ciberespaço e dos registos aí produzidos (veja-se um exemplo recente em http://www.publico.pt/cultura/noticia/a-misteriosa-guerra-dos-portugueses-na-india-que-so-existiu-na-wikipedia-1579946).
Os mecanismo de controlo têm uma abrangência e eficácia contestáveis, por não serem infalíveis, nalguns casos, dependerem da vontade do indivíduo (de que são exemplo as Creative Commons).
Por outro lado, a rede de conexões, sobreposição e comparação de informação tanto sobre o Eu como sobre o Registo são em si um outro mecanismo regulatório que pode contrabalançar a falta de transparência e autenticidade.Independentemente das características próprias da rede que consentem e limitam ao mesmo tempo que o Ser (Eu e os Outros) e o Registo (Meu ou do Outro) sejam autênticos e transparentes, parece ser igual a premissa de base que as condiciona na Sociedade em Rede, tal como as condicionou nas suas predecessoras: os valores éticos do Indivíduo e a sua relação com a Moral vigente.
Daí a necessidade de reconhecer que a identidade do Outro, tal como a do próprio, é densa e não única e que os Registos são reflexo dessa complexidade (que por vezes a Rede ajuda a esclarecer e outras vezes torna ainda mais opaca).
Estar alerta e agir em conformidade com esta natureza do Eu e dos Registos (pela proteção de dados pessoais, pelo cruzamento de informação, pela análise de características validadoras), é uma garantia (mesmo que não absoluta) para o reconhecimento da autenticidade e transparência na Rede.
Referências
Lévy, P. (1997). O que é o virtual? São Paulo: Edições 34.
Malveira, A., & Galarça. (2011). A espetacularização da identidade virtual nas redes sociais. Presented at the XII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul / Publicidade e Propaganda, Londrina, PR. Retrieved from http://www.scribd.com/doc/45306272/A-espetacularizacao-da-identidade-virtual-nas-redes-sociais
Papert, S. (1997). A Família em Rede. Lisboa: Relógio D’Água.
Teixeira, A. M. (2006). Eu próprio como se um outro fosse [Moi- Même comme si j’étais un autre] – A aprendizagem como auto-interpretação em Paul Ricoeur. In Henriques, F. (coord) – A Filosofia De Paul Ricoeur (pp. 431–444). Ariadne. Retrieved from http://www.ridh.fmleao.pt/paginacao/A_Identidade_em_construcao.pdf
Turkle, S. (1997). A Vida no Ecrã. Lisboa: Relógio D’Água.